10/2025 * DIREITO EMPRESARIAL
A discussão sobre a validade de cláusulas que limitam a responsabilidade em contratos empresariais ganhou tração nos tribunais brasileiros, embora ainda não exista pacificação. A tendência que se desenha é de respeito à autonomia privada quando há negociação efetiva entre partes capazes, sem abuso econômico, violação de normas de ordem pública ou tentativa de esvaziar a obrigação principal. Em síntese, quando o teto indenizatório é proporcional ao risco do negócio e não funciona como escudo absoluto contra deveres essenciais, os julgados têm reconhecido sua validade.
Os argumentos costumam se organizar em dois blocos. De um lado, a defesa das cláusulas invoca a liberdade contratual e o princípio do pacta sunt servanda, lembrando que contratos empresariais são, em regra, fruto de barganha e avaliação de riscos. De outro, quem busca afastá-las aponta cenários de abuso de poder econômico, violação à ordem econômica, falta de razoabilidade no limite, tentativa de isenção da obrigação principal, afronta a direitos fundamentais e, de modo decisivo, a ocorrência de dolo ou culpa grave.
A jurisprudência recente tem sido menos receptiva a pedidos de invalidação que se apoiam apenas em alegações genéricas de desequilíbrio, exigindo prova concreta de condutas que rompam a boa-fé e a comutatividade do ajuste.
Um caso paradigmático é o REsp 1.989.291, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). A controvérsia nasceu de uma relação comercial de longa duração com a Hewlett-Packard Brasil, na qual o parceiro alegou alterações unilaterais e benefício indevido da fornecedora. Em primeiro grau, houve condenação com limitação do montante a um milhão de dólares, conforme a cláusula pactuada. O Tribunal de Justiça paulista afastou o teto, entendendo como irrazoável e apto a gerar locupletamento ilícito. No STJ, a solução foi por maioria.
O voto vencedor restabeleceu a limitação ao reconhecer que ambas as companhias eram de grande porte, que não se comprovou dolo na elaboração da cláusula e que, naquele contexto, a restrição era compatível com a lógica do contrato. A divergência, vencida, sustentava que o histórico de imposições unilaterais justificaria o afastamento do limite. O resultado final reforça que, em relações paritárias e sem prova de conduta dolosa, prevalece o que foi livremente pactuado.
A tendência não se restringe a contratos de fornecimento ou tecnologia. Em litígios envolvendo guarda de bens em cofres bancários, por exemplo, o STJ já afirmou que não é abusiva a cláusula que impõe limite aos valores e objetos que podem ser armazenados, pois ela delimita o risco segurado e a extensão da obrigação de segurança.
Ao mesmo tempo, reconheceu que a instituição financeira responde por danos morais quando há falha de serviço, o que mostra que a limitação não é salvo-conduto para descumprimento culposo. A leitura combinada dessas decisões indica que o controle judicial privilegia a razoabilidade do arranjo e o vínculo com a matriz de riscos do negócio.
Esse panorama sugere cautela redobrada no desenho e na aplicação prática das cláusulas. Em primeiro lugar, a fixação do teto deve dialogar com a natureza do contrato, com a exposição típica e com a alocação de riscos ajustada entre as partes. Limites simbólicos, desconectados do valor econômico da operação, têm maior chance de cair.
Em segundo lugar, a cláusula não pode operar como exoneração generalizada nem impedir o cumprimento do objeto principal. Em terceiro, condutas marcadas por dolo ou culpa grave desautorizam o benefício. Em quarto, elementos que demonstrem negociação real e equilíbrio de forças funcionam a favor da validade, como histórico de trocas de minutas e registros de que ambas as empresas compreenderam os impactos do teto.
Por fim, qualquer fricção com normas de ordem pública, direitos fundamentais ou regras concorrenciais tende a afastar a limitação. Esses vetores aparecem de forma recorrente na argumentação e nos resultados dos julgados recentes.
Nada disso significa blindagem automática. Em disputas em que se comprova abuso estrutural na formação ou na execução do contrato, ou em que o teto serve, na prática, para neutralizar deveres essenciais, a tendência se inverte. O que os precedentes revelam é um movimento de deferência à engenharia contratual de agentes econômicos sofisticados, sem abrir mão do controle de razoabilidade e de integridade do vínculo. A cláusula limitativa, bem calibrada, contribui para previsibilidade e redução de custos de transação. Mal calibrada, desvirtua o equilíbrio, estimula litígios e costuma ser afastada.
Para empresas que pretendem utilizar esse instrumento com segurança, é recomendável justificar economicamente o teto em termos de risco segurável, perda potencial e preço, explicitar exclusões compatíveis com a boa-fé, assegurar simetria entre as partes e documentar o processo de negociação. Esses cuidados não garantem vitória em toda controvérsia, mas elevam substancialmente a probabilidade de validação judicial ao alinhar a cláusula ao que a jurisprudência tem considerado aceitável.
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